STJ RESP_1671422 - Min. Raul Araújo

A vida a dois é uma jornada de constante evolução. O fortalecimento dos laços e a construção de um patrimônio comum são testemunhas do amor e da parceria que florescem com o tempo. Com as mudanças, você pode se perguntar: é permitido alterar o regime de bens durante o casamento?

Esse texto é pra você, que pode estar considerando essa mudança por qualquer motivo que seja – fortalecimento dos laços familiares, crescimento patrimonial ou simplesmente porque o regime atual não reflete mais a realidade do seu matrimônio. 

Aqui, você encontrará um guia prático que o orientará sobre essa matéria.

Procedimentos Legais

O Código de Processo Civil, em seu artigo 734, oferece as diretrizes para a alteração do regime de bens durante o casamento. De acordo com a regra legislativa, alguns requisitos são indispensáveis, como a motivação e a assinatura de ambos os cônjuges.

Nesse sentido, o pedido do casal deve ser determinado, tornando claro e específico o regime que desejam adotar. Após a devida formulação do pedido, motivado e assinado por ambos os cônjuges, o procedimento passa pelo crivo do juiz, que, após intimação do Ministério Público e publicação de edital, decide após 30 dias. Vejamos:

Art. 734. A alteração do regime de bens do casamento, observados os requisitos legais, poderá ser requerida, motivadamente, em petição assinada por ambos os cônjuges, na qual serão expostas as razões que justificam a alteração, ressalvados os direitos de terceiros.

§ 1º Ao receber a petição inicial, o juiz determinará a intimação do Ministério Público e a publicação de edital que divulgue a pretendida alteração de bens, somente podendo decidir depois de decorrido o prazo de 30 (trinta) dias da publicação do edital.

§ 2º Os cônjuges, na petição inicial ou em petição avulsa, podem propor ao juiz meio alternativo de divulgação da alteração do regime de bens, a fim de resguardar direitos de terceiros.

§ 3º Após o trânsito em julgado da sentença, serão expedidos mandados de averbação aos cartórios de registro civil e de imóveis e, caso qualquer dos cônjuges seja empresário, ao Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins.

A alteração de regime de bens é uma ação de jurisdição voluntária. Quando falamos sobre jurisdição voluntária, estamos nos referindo a um tipo especial de processo legal que não envolve disputas ou conflitos entre as partes.  

Com efeito, ele é mais rápido e simples do que os processos judiciais comuns, pois trata de questões como a aprovação de alguns tipos de acordos ou a gestão de certos assuntos familiares e patrimoniais. A duração desses procedimentos é geralmente mais curta e segue as diretrizes estabelecidas pelo Código de Processo Civil: 

Art. 720. O procedimento terá início por provocação do interessado, do Ministério Público ou da Defensoria Pública, cabendo-lhes formular o pedido devidamente instruído com os documentos necessários e com a indicação da providência judicial.

Art. 721. Serão citados todos os interessados, bem como intimado o Ministério Público, nos casos do art. 178, para que se manifestem, querendo, no prazo de 15 (quinze) dias.

Art. 722. A Fazenda Pública será sempre ouvida nos casos em que tiver interesse.

Art. 723. O juiz decidirá o pedido no prazo de 10 (dez) dias.

Parágrafo único. O juiz não é obrigado a observar critério de legalidade estrita, podendo adotar em cada caso a solução que considerar mais conveniente ou oportuna.

Art. 724. Da sentença caberá apelação.

Do ponto de vista procedimental, é necessário, todavia, não confundir a alteração de regime de bens de um matrimônio com os procedimentos de jurisdição voluntária comuns, como a alienação, arrendamento ou oneração de bens de crianças ou adolescentes, de órfãos e de interditos.

Isto porque, os exemplos trazidos acima são regulados pelos artigos 719 a 725 do CPC, enquanto a alteração do regime de bens procedimento especial de jurisdição voluntária, é tratada em seção específica, e suas regras estão insculpidas no art. 734.

Decisões Judiciais e Impacto

A respeito dos efeitos da alteração do regime, uma decisão recente do STJ (datada de 30/05/2023) trouxe um novo olhar para a matéria.

A Quarta Turma do STJ decidiu que a mudança do regime de bens pode ter efeitos retroativos (ex tunc1), desde que beneficie a coletividade e não prejudique terceiros ou cause desequilíbrio.

Em face disso, a Quarta Turma do STJ, em face de uma ação impetrada por um casal que buscava a alteração do regime de separação total de bens para o regime de comunhão universal, com o argumento de que o regime inicial já não atendia aos interesses consolidados ao longo do casamento, decidiu que a mudança do regime de bens pode ter efeitos retroativos (ex tunc), desde que beneficie a coletividade e não prejudique terceiros ou cause desequilíbrio.

Trata-se, portanto, de uma interessante atualização jurisprudencial, oriunda de um entendimento que costumava ser rejeitado pela Doutrina2, e importa na “comunicação de todos os bens presentes e futuros dos cônjuges e suas dívidas passivas“. 

Para corroborar com os argumentos aqui expostos, cumpre transcrever, na íntegra, a ementa da decisão do STJ: 

RECURSO ESPECIAL. CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. DIREITO DE FAMÍLIA. CASAMENTO. ALTERAÇÃO DO REGIME DE BENS DE SEPARAÇÃO TOTAL PARA COMUNHÃO UNIVERSAL. RETROAÇÃO À DATA DO MATRIMÔNIO. EFICÁCIA “EX TUNC”. MANIFESTAÇÃO EXPRESSA DE VONTADE DAS PARTES. COROLÁRIO LÓGICO DO NOVO REGIME. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. 

Nos termos do art. 1.639, § 2º, do Código Civil de 2002, “é admissível alteração do regime de bens, mediante autorização judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos de terceiros”.

A eficácia ordinária da modificação de regime de bens é “ex nunc“, valendo apenas para o futuro, permitindo-se a eficácia retroativa (“ex tunc“), a pedido dos interessados, se o novo regime adotado amplia as garantias patrimoniais, consolidando, ainda mais, a sociedade conjugal.

A retroatividade será corolário lógico do ato se o novo regime for o da comunhão universal, pois a comunicação de todos os bens dos cônjuges, presentes e futuros, é pressuposto da universalidade da comunhão, conforme determina o art. 1.667 do Código Civil de 2002.

A própria lei já ressalva os direitos de terceiros que eventualmente se considerem prejudicados, de modo que a modificação do regime de bens será considerada ineficaz em relação a eles (art. 1.639, § 2º, parte final).

Recurso especial provido, para que a alteração do regime de bens de separação total para comunhão universal tenha efeitos desde a data da celebração do matrimônio (“ex tunc”).

(REsp n. 1.671.422/SP, relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 25/4/2023, DJe de 30/5/2023.) 

 

Opinião de Especialistas

O juiz Rafael Calmon, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), corrobora com a decisão do STJ, ressaltando que a retroatividade deve ser aplicada de forma criteriosa, principalmente ao migrar de um regime mais restritivo para um mais inclusivo. 

Em sua opinião, o efeito retroativo não deve ser possível em toda e qualquer sentença que modifique o regime de bens, “apenas quando vem de um regime mais restritivo originariamente para um mais inclusivo.” 

Nessa perspectiva, a mudança do regime de comunhão de bens para o de separação total de bens, por exemplo, não poderia retroagir à data do casamento, já que, como bem sintetiza o Magistrado, o credor poderia ter grande possibilidade de receber a dívida de um casal na comunhão universal, pois o regime permite muita agregação de patrimônio. Assim, “algumas pessoas podem contrair dívidas com esse casal justamente por saber dessa garantia na hipótese de inadimplemento. 

Para ilustrar essa ideia, imagine um casal, João e Maria, que se casou sob o regime de comunhão universal de bens. Neste regime, quase todos os bens e dívidas adquiridos antes e durante o casamento são compartilhados igualmente entre eles. Dez anos depois, eles decidem mudar para o regime de separação total de bens, onde cada uma passa a ter propriedade e responsabilidade exclusivas sobre seus bens e dívidas. 

Se essa mudança fosse retroativa à data do casamento, um credor que emprestou dinheiro ao casal durante o regime de comunhão universal poderia ser prejudicado. No regime original, ele teria o direito de cobrar a dívida de ambos os cônjuges, considerando todo o patrimônio do casal. No entanto, com a retroatividade para o regime de separação total, esse direito seria limitado, pois agora só poderia cobrar de quem contraiu a dívida, afetando a garantia que ele tinha no momento do empréstimo. 

Portanto, segundo a visão do Juiz Rafael Calmon, essa retroatividade não deveria ser permitida nesse caso, pois altera significativamente os direitos de terceiros que contavam com o regime anterior de comunhão de bens como garantia. 

Competência Territorial e Documentação

Em exame da legislação brasileira, é preciso ressaltar que a competência para a proposição de ação de alteração de regime de bens é determinada pelo Código Civil e pelo Código de Processo Civil.

De acordo com o CPC, a competência para processar e julgar ações de natureza pessoal, como a alteração de regime de bens, é estabelecida com base no domicílio do autor:

Art. 53. É competente o foro:

I – para a ação de divórcio, separação, anulação de casamento e reconhecimento ou dissolução de união estável:

a) de domicílio do guardião de filho incapaz;

b) do último domicílio do casal, caso não haja filho incapaz;

c) de domicílio do réu, se nenhuma das partes residir no antigo domicílio do casal;

Não obstante, é relevante também o entendimento doutrinário de Luiz Felipe Brasil Santos, que, com propriedade assevera: “na hipótese de já ter ocorrido o registro de um pacto antenupcial no álbum imobiliário do registro do primeiro domicílio conjugal e se encontre o casal em outro domicílio, impositivo novo registro, no domicílio atual, além de averbar-se no registro original a alteração levada a efeito”.3

Domicílio do Casal

Cabe também destacar o entendimento do Instituto Brasileiro do Direito de Família – IBDFAM:

A competência será do juiz do domicílio do casal; todavia, havendo vara de família, esta será competente para conhecer do pedido. Será obrigatória a intervenção do Ministério Público e parece de todo recomendável a realização de audiência de instrução, na qual o juiz poderá melhor aferir se ambos os cônjuges estão manifestando livremente a vontade no sentido de alterar o regime de bens, e outros aspectos relevantes para o deferimento ou não do pedido.

Por fim, é necessário compreender que embora o local do casamento seja relevante para determinar a competência em outros aspectos do direito de família, para a alteração do regime de bens, o local do casamento em si não influencia a competência. O que importa é o domicílio atual do casal ou a primeira residência após o casamento.

Conclusão 

Neste guia, exploramos o complexo universo jurídico da alteração do regime de bens no casamento. Abordamos como essa modificação após o casamento gera inúmeras questões práticas e teóricas. A recente decisão da Quarta Turma do STJ sobre a retroatividade das mudanças de regime de bens oferece novas perspectivas para casais. Esta possibilidade, condicionada à proteção de terceiros e ao bem comum, abre novos caminhos para ajustar as relações patrimoniais às mudanças na relação conjugal.

O Juiz Rafael Calmon traz um olhar crítico sobre a aplicação da retroatividade, especialmente no trânsito entre regimes mais restritivos e inclusivos. Esta visão destaca a necessidade de uma abordagem criteriosa.

Analisamos também a  competência territorial e indicamos a documentação necessária ao processo. Entender claramente as leis e os procedimentos é fundamental para o sucesso da ação. O domicílio do casal e a competência da vara de família são pontos chave nesse contexto.

Concluímos que a alteração do regime de bens pode ser um aspecto complexo e importante para a vida do casal. Compreender as normas, respeitar os procedimentos legais e aplicar as decisões com prudência são fundamentais nessa jornada de mudança.

Para casais que buscam modificar seu regime de bens, aconselhamos a consulta a um advogado especializado. Este profissional é essencial para assegurar uma alteração correta e segura, respeitando todas as normas legais. O advogado especializado não só assessora o procedimento judicial, mas também orienta sobre o impacto dessa alteração no planejamento patrimonial e sucessório do casal, além de fornecer orientações sobre a proteção dos bens frente a futuras dívidas


Referências

CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Os efeitos da modificação do regime de separação total para o de comunhão universal de bens, na constância do casamento, retroagem à data do matrimônio (eficácia ex tunc). Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/8c71d6367dc1f7a95488ccff97c2f37e>. Acesso em: 10/01/2024