Imagine a cena: uma família reunida na sala de estar, crianças brincando no chão enquanto os adultos conversam, compartilhando histórias e sonhos para o futuro.
Esta é a imagem da moradia familiar, não apenas um teto sobre as cabeças, mas um santuário de lembranças, um bastião de estabilidade em um mundo em constante mudança. Agora, visualize um perigo rondando essa cena de tranquilidade: a ameaça de dívidas que poderiam, sem um aviso, transformar essa cena de paz em desespero.
No Brasil, a moradia é um direito constitucional, um compromisso do país com a segurança e o bem-estar de suas famílias. Sem tal direito, a vida, com seus imprevistos, poderia colocar essa estabilidade em xeque, fazendo com que famílias perdessem um bem tão precioso: o lar.
O “Bem de Família” é uma proteção jurídica desenhada para proteger a moradia contra dívidas. Este instituto garante que, mesmo nas adversidades, as famílias brasileiras possam manter a sua moradia protegida, assegurando que a casa onde crescem e vivem não será perdida por dívidas que podem surgir de imprevistos e não de imprudência.
As estatísticas mostram que muitos brasileiros estão a apenas um passo de enfrentar dificuldades financeiras severas devido a dívidas acumuladas por desemprego, doenças ou outros reveses da vida. Nessas horas, o “Bem de Família” surge como um escudo, protegendo o direito à moradia definido pela Constituição, mantendo a residência da família segura e impenhorável, exceto em circunstâncias muito específicas e previstas em lei.
O código de processo civil dispõe sobre como a pessoa pode ser obrigada a pagar uma quantia em dinheiro. Uma forma disso acontecer é a “penhora” que é quando a justiça toma um bem da pessoa que deve dinheiro, para vender e usar o dinheiro da venda para quitar a dívida. Mas existem coisas que a lei assegura que não podem ser tomadas nesse processo, são chamadas de “impenhoráveis”.
É aí que entra o bem de família. O bem de família é um instituto jurídico que protege a moradia da família, tornando-a impenhorável para o pagamento de dívidas, salvo em algumas hipóteses, que veremos a seguir.
Como funciona o bem de família no direito brasileiro?
Na prática, o bem de família é uma propriedade destinada à residência e moradia de uma família que é protegido por lei para garantir um lugar seguro para morar. Esse imóvel pode ser usado pelos mais diversos tipos de família, formadas por casamento, união estável ou até mesmo por uma só pessoa.
A ideia desse instituto jurídico é assegurar que esse lugar não possa ser tomado por dívidas ou processos legais, garantindo assim um lar estável e protegido para a família que o utiliza.
No contexto do direito brasileiro, o bem de família se manifesta em duas formas distintas:
Bem de família legal
Proteção legal de um imóvel residencial principal. Essencialmente é uma salvaguarda imposta por lei que protege a residência principal da família de ser apreendida para pagamento de dívidas, salvo em casos específicos, garantindo assim a moradia familiar.
Bem de família convencional ou voluntário
Instituto constituído mediante iniciativa do proprietário em designar formalmente um imóvel como bem de família através de registro no cartório.
O bem de família legal
Moradia é mais do que um lugar para morar. É um direito essencial para a dignidade da pessoa humana e para o desenvolvimento da família.
No Brasil, o direito à moradia é um direito social estabelecido pelo artigo 6º da Constituição Federal. Isso significa que é um direito e garantia fundamental do cidadão brasileiro.
Para proteger o direito básico à moradia, a lei brasileira, a Lei nº 8.009/19901 estabelece que a casa onde uma família mora não pode ser tomada para pagar dívidas. Isso quer dizer que, mesmo se uma família deve dinheiro por causa de dívidas comuns, como empréstimos pessoais, dívidas comerciais, impostos ou até contribuições previdenciárias, a sua casa não pode ser usada para quitar essas dívidas. Essa regra é uma forma importante de garantir que as famílias tenham um lugar seguro para viver, protegendo seu lar de ser perdido em situações financeiras difíceis.
No entanto, existem situações específicas, que devido a sua importância e função social, o legislador considerou importantes o suficiente para permitir a penhora do imóvel mesmo se tratando de bem de família, tais como:
- Dívidas decorrentes de impostos, predial ou territorial, taxas e contribuições devidas em função do imóvel familiar, como por exemplo a dívida condominial;
- Dívidas de pensão alimentícia;
- Dívidas decorrentes de sentença penal condenatória transitada em julgado;
- Dívidas decorrentes de execução de hipoteca ou outro ônus real acessório, constituído em favor de instituição de crédito, para fins de construção ou reforma do imóvel residencial.
Em suma, o bem de família legal é aquele protegido por lei, assegurando a imunidade de um imóvel contra execuções judiciais para quitar dívidas, desde que se configure como a única residência da família e atenda aos critérios estipulados na legislação.
Em contrapartida, o bem de família convencional não é constituído por lei, mas sim mediante uma declaração expressa dos proprietários, que podem eleger um imóvel para ter proteção sem necessariamente seguir os critérios estritos estabelecidos para o bem de família legal.
O bem de família convencional
O bem de família convencional ou voluntário está regulamentado nos artigos 1.711 a 1.722 do Código Civil e a sua aplicação não substitui o bem de família legal, ambos coexistem em nosso ordenamento jurídico.
Esse instituto atua como uma proteção temporária designada especificamente para ser o lar e sustento da família, impedindo, em geral, a transferência de propriedade. Portanto, para que exerça essa vontade, a legislação estabelece os seguintes critérios:
- Imóvel próprio: O instituidor deve ser o proprietário do imóvel comprovado pelo registro da aquisição na matrícula do imóvel, não ultrapassando um terço do patrimônio líquido do instituidor;2
- Fins residenciais: O imóvel deve ser para fins residenciais urbano ou rural, sendo destinado ao domicílio familiar;3
- Registro imobiliário: A escritura pública ou inventário deverão ser levados à ao Cartório de Registro de Imóveis da circunscrição do imóvel.4
Como instituir o bem de família?
A Lei de Registros Públicos (6.015/73) nos apresenta a forma que se dará essa instituição na matrícula imobiliária5, que se inicia coma confecção de uma escritura pública através da qual o instituidor declarará que seu determinado imóvel ficará isento de execução por dívida.
Essa escritura deverá ser apresentada ao Cartório de Registro de Imóveis da circunscrição do imóvel, que 1) fará análise técnica e jurídica, 2) publicará na imprensa local pelo prazo de trinta dias e, por fim, 3) transcreverá a escritura pública no livro de registro auxiliar nº 3, lançando o registro na matrícula do imóvel, garantindo que aquele imóvel está sob a afetação do bem de família.6
Posso instituir bem de família sobre meus bens móveis?
Sim. A legislação não se limitou ao bem imóvel, ela abrangeu inclusive os bens móveis que compõe a casa, o que chamamos de “pertenças”, como por exemplo os móveis da casa e eletrodomésticos, contudo, para que se incluam na instituição do bem de família, deverão preencher os seguintes requisitos:
- Destinação: a destinação dos bens móveis instituídos deverá se limitar à conservação do imóvel e sustento da família, ou seja, não se incluem veículos de transporte, obras de arte e adornos suntuosos;7
- Limite: não poderá ultrapassar o valor do próprio imóvel, à época da instituição, pois o que se pretende proteger é a casa principalmente, os móveis incluídos apenas o acompanham, por isso não podem ter valor maior que a moradia8
- Registro: deverão ser individualizados no instrumento de instituição de família. Os casos de títulos nominativos (art. 921 do CC), sua instituição constará nos respectivos livros de registros.9
O instituidor também pode designar uma instituição financeira para administrar esses ativos financeiros.
Quais os efeitos do bem de família convencional?
Além de não sofrer os efeitos da penhora, como já explicamos, o bem de família convencional quando registrado na matrícula imobiliária impede que a casa seja vendida sem o consentimento dos interessados e seus representantes legais, devendo ainda ser ouvido o Ministério Público, o que chamamos de “inalienável”.
Esse impedimento de vender o imóvel está atrelado ao próprio sentido do bem de família convencional. Quando a entidade familiar decidiu por transformar sua casa em bem de família, o intuito não seria apenas de blindar contra dívidas, mas prolongar a existência daquele lar familiar.
Portanto, se for do interesse da família não manter aquela casa com o sentido de “bem de família”, é necessário que a retirem na matrícula do imóvel, como veremos ainda.
Mesmo com o bem de família registrado, é possível a penhora alcançar meus bens?
Apesar de ser diferente do bem de família legal, em algumas situações, a execução por dívidas pode atingir os bens protegidos pelo bem de família convencional, quais sejam10:
- Dívidas anteriores: todas as dívidas adquiridas antes da constituição do bem de família se enquadram, de qualquer natureza;
- Dívidas posteriores: aquelas relacionadas ao prédio, como IPTU e às despesas de condomínio.
É possível cancelar o bem família?
Sim. O bem de família convencional pode ser extinto por solicitação do próprio instituidor, que pode requerer a extinção na matrícula do imóvel. No entanto, é essencial estar ciente de outras situações que podem levar à extinção do bem de família:
- Dissolução judicial do bem protegido11: Se for comprovada a impossibilidade de manter o bem de família como inicialmente estabelecido, o juiz, a pedido das partes interessadas, pode extinguir ou sub-rogar os bens que o constituem em outros, ouvindo o instituidor e o Ministério Público.
- Vontade do cônjuge sobrevivente: O(a) viúvo(a) pode requerer a extinção do bem de família após a dissolução do casamento por morte.12
- Falecimento de ambos os cônjuges e maioridade dos filhos: Se ambos os cônjuges falecerem e os filhos alcançarem a maioridade, desde que não estejam sujeitos à curatela, o bem de família pode ser extinto. É importante mencionar que o bem de família não se extingue se os cônjuges falecerem e houver filhos menores de 18 anos.13
Mesmo que a extinção do bem de família convencional seja registrada na matrícula, as proteções oferecidas pelo bem de família legal não são automaticamente excluídas.
Conclusão
O bem de família representa uma instituição jurídica crucial, cujo propósito é salvaguardar o direito à moradia da família. Sua presença é fundamental para garantir um espaço seguro para residência, mesmo diante de adversidades financeiras.
Na prática, estabelecer um bem de família não apenas protege o imóvel de dívidas que possam comprometer o patrimônio familiar, mas também assegura a preservação desse bem para as gerações futuras. Essa proteção abrange questões de planejamento sucessório e estabilidade residencial.
Portanto, visando essa proteção patrimonial, é importante considerar uma assessoria jurídica especializada em reuniões familiares, tanto na situação do bem de família convencional, no acompanhamento burocrático cartorário e planejamento sucessório, como na proteção judicial do direito de não ter seu bem no alvo de dívidas, como o caso do bem de família legal.